1. Azar
“Tudo o que existe no universo é fruto do azar e da necessidade.”
Com essa citação de Demócrito começa um dos ensaios mais atrativos da segunda metade do século XX, El azar y la necesidad [O azar e a necessidade] do Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina (1965) Jacques Monod.1
No primeiro capítulo do livro, Monod trata de demonstrar a dificuldade racional de estabelecer um sistema para distinguir os objetos artificiais –produto de uma atividade projetiva consciente– dos objetos naturais –resultantes do jogo gratuito das forças físicas–. Para sua análise, Monod estabelece a ficção de um viajante extraterrestre que quer realizar um programa capaz de distinguir os objetos artificiais dos naturais, baseando-se exclusivamente em critérios de estrutura e forma macroscópica. De acordo com essa premissa, os únicos critérios de distinção possíveis seriam, fundamentalmente, dois: regularidade e repetição.
Desse modo, um objeto é mais artificial (se esta fosse uma qualidade quantificável) em função da sua maior regularidade –superfícies planas, arestas retilíneas, ângulos retos, simetrias exatas, etc. – e de sua maior capacidade de repetição, já que artefatos homólogos, destinados a um mesmo uso, reproduzem as intenções constantes de um projeto e seu criador. Porém, Monod vai mais longe e trata de estabelecer as diferenças em função do fim para o qual cada objeto foi criado. A análise do caráter teleonômico da natureza, que supõe a existência de um projeto e um fim nos objetos naturais, o leva a expor o paradoxo existente em certas estruturas microscópicas naturais cuja única lei geral é a do azar, o que contradiz, desde um ponto de vista epistemológico, o “postulado da objetividade” que tem acompanhado, e contribuído ativamente, o desenvolvimento da ciência desde, pelo menos, três séculos.
Nos encontraríamos outra vez diante do paradoxo da objetividade, algo inalcançável e, inclusive, inexistente, mas que supõe um sistema de análise cientifico com um valor diferencial comparado a outros sistemas, não só a partir de um ponto de vista lógico, mas também experimental, o que faz com que a busca da objetividade seja algo, no mínimo, útil dentro de qualquer processo criativo.
2. Mínima repetição
Esqueçamos, por enquanto, o “postulado da objetividade” e voltemos ao mundo do puramente visual. Como já dissemos anteriormente, se nos atamos ao aspecto exterior dos objetos, salvo as numerosas exceções, os objetos artificiais podem distinguir-se dos objetos naturais por sua regularidade e repetitividade.
Curiosamente, “regularidade” e “repetição” são as duas qualidades que definiriam com mais precisão um tipo de arte que se realiza fundamentalmente na segunda metade da década de 1960: o minimalismo.
Ad Reinhardt, pai do minimalismo, situa-se contra a rápida assimilação da arte através de publicações e reproduções, defendendo uma arte que não possa ser reproduzida, objeto de suas últimas obras, todas elas iguais, repetidas com a mesma dimensão de 150 x 150 cm.
De coloração extremamente escura, os quadrados continham um desenho cruciforme praticamente inapreensível, pois a variação de tonalidade e cor eram tão suaves que pareciam ser extensões de uma pintura negra. Realmente as Ultimate Paintings [Pinturas Últimas] eram irreproduzíveis e, do nosso ponto de vista, seu máximo interesse residia em sua polêmica repetição.
A tese fundamental de Reinhardt era a defesa da “arte como arte”: a arte não tem significado fora de si mesmo e seu significado não pode transladar-se a nenhum outro meio. Para Reinhardt, a arte só podia ser conduzida mediante negociações absolutas: não tradição, não composição, não representação, não figuração, não desenho, não cor… Na arte “o que conta não é o que se põe, mas sim o que se deixa de por”.2
Se Ad Reinhardt é o pai do minimalismo, Donald Judd talvez seja o minimalista mais radical. Suas esculturas não fazem referência a leis gerais nem a uma ordem cósmica, mas sim à ordem simples dos objetos dispostos diante de nós, uns junto a outros.
A obra de Judd, já comentada anteriormente3, se centra sobre a materialidade dos objetos, abandonando o ilusionismo e os recursos metafóricos característicos da tradição pictórica e escultórica ocidentais. Na sua escultura mais conhecida, Untitled [Sem título, 1966], a repetição de um elemento conforma a obra completa e sua dimensão é condicionada somente pelas dimensões do lugar onde se expõe.
Em sua famosa Columna sin fin (1936-1937), Constantin Brancusi já havia experimentado as possibilidades que tinha a repetição de um único elemento idêntico na configuração de uma obra. Tanto Untitled como a Columna sin fin são objetos cuja lei de formação vem dada pela idéia de repetição, sendo suscetíveis de serem produzidas, autonomamente, tantas vezes quanto fosse preciso, de acordo com a realidade dimensional do lugar onde fossem instaladas.
3. Sonhos e cidades
As cidades, como disse Joseph Rykwert, não se parecem aos fenômenos naturais, pois são criações artificiais integradas por elementos produzidos, simultaneamente, por uma vontade consciente e o azar.
Para Rykwert, ao que mais pode se parecer uma cidade é a um sonho. Mas as cidades sonhadas são sempre reiterativas. É dentro do uniforme, da continuidade, onde cobra interesse a exceção e a descontinuidade… Quanto mais gostamos dessas cidades cujas invariáveis, sejam de traço, uso ou construção, somos capazes de reconhecer!
Sem entrar nos atrativos ritos de sua fundação, analisados detalhadamente por Rykwert,4 podemos nos deter a comentar um exemplo de cidade.
Como todos sabemos, o Império Romano se estruturava sobre uma constelação de
cidades, que, no fundo, tratavam de ser uma reprodução abstrata, e em menor escala, da metrópole. Quando estas cidades eram de nova criação, respondiam a um esquema estabelecido, o que fazia com que se repetissem com grande uniformidade em todos os seus territórios. Assim, o esquema clássico de cidade romana de colonização é apresentado como um plano de planta quadrada, ou retangular mais frequentemente, rodeada por um conjunto de muralhas, com quatro portas no centro de seus lados, de onde partem as duas ruas que a tradição renascentista fez conhecer como cardus e decumanus.
Temos, então, uma estrutura, repetida voluntariamente nas colônias, que se adequa às condições de azar de cada lugar e que está formada por uma trama retangular de insulae que se repete dentro dos quatro quadrantes delimitados pelo cardus e o decumanus. Tomando a licença de entender a história como uma sucessão plana e transparente de acontecimentos, trata-se do quadrado e da cruz de Reinhardt repetidos uma vez mais por toda a geografia do império.
A história da cidade está cheia de exemplos de cidades formadas, à semelhança das cidades romanas, pela repetição de insulae residenciais com forma retangular dentro de uma retícula de ruas mais ou menos hierarquizadas. Cidades de colonização e ampliação pensadas de uma só vez por seus fundadores.
Ainda sendo um caso muito diferente, existe certa similaridade conceitual entra as cidades de colonização e a cidade moderna, ou mais concretamente a cidade ideal proposta pelos arquitetos do movimento moderno.
Como já explicaram os professores Juan Antonio Cortés e María Teresa Muñoz, “uma das imagens mais representativas de si mesma que foi difundida pela arquitetura moderna, com uma força comparável a de suas manifestações de objetividade e rigor tecnológico, é a dessas extensões sem limites povoadas por edifícios idênticos que a modernidade oferecia como alternativa à cidade tradicional. Frente à complicação e variedade reinantes na arquitetura anterior –o ecletismo e o pitoresquismo do século XIX–, os arquitetos modernos trazem, em paralelo a sua vontade de purificação e de higiene, uma cidade constituída por unidades de edificação isoladas e elementares que se repetem ao infinito”.5 Desde seus inicios, a arquitetura moderna aceitou plenamente a repetição não só como imperativo tecnológico da nova época, mas também, mais concretamente, como ineludível sistema de configuração urbana.
São a Cidade regional e a Cidade vertical de Ludwig Hilberseimer, a Ville Radieuse e a Cidade para três milhões de habitantes de Le Corbusier “as manifestações mais ambiciosas dessa ideia latente em tantos arquitetos modernos. Hilberseimer e Le Corbusier veem, em consequência, se multiplicarem num instante seus edifícios até cobrir completamente o solo, seja com um tecido contínuo e homogêneo ou salpicando-o com torres isoladas que o pontuam com uma regularidade infinita”.6 É interessante constatar que as disposições dos edifícios nessas “propostas ideais” de cidade supõem a existência de um tratamento abstrato do espaço como retícula, uma anulação da hierarquia planimétrica, tão querida na cidade tradicional.
A busca de uma sistematização racional na construção e na planificação das cidades explica em grande parte o longo caminho percorrido desde as cidades hipodâmicas às utopias modernas. Porém, anteriormente, já se haviam formado cidades como estruturas repetitivas de edificações similares, cuja formalização vinha unificada pelos sistemas construtivos, o uso, os costumes, e, inclusive, os ritos. Nos encontramos diante de cidades formadas pela repetição de edificações otimizadas pela tradição.
Assim, por exemplo, se vemos o povoado lacustre de Montada dell’Orto (1400 a.C.), a repetição de uma habitação tipo conforma a estrutura reticulada do conjunto, de forma muito similar a da cidade de Cantón (1665 d.C.), três mil anos posterior.
Porém, ainda quando não se recorre à retícula viária, as agrupações de casas podem reproduzir organismo de estrutura repetitiva. Estamos pensando em situações como a das casas-pátio de Marraquesh (Marrocos) ou as casas abaixo da terra em Tung Kwan (China), pois, dentro de um mesmo âmbito cultural-construtivo, é norma dar uma mesma resposta a um mesmo problema.
Sem necessidade de recorrer a exemplos tão extremos, ainda que nisso resida seu atrativo, é evidente que a casa é em si mesma a célula que, repetida, conforma a maior parte das construções de nossas cidades. Também é evidente que sua sistematização e adequação às situações concretas de cada sociedade tem sido em todo momento a chave de sua repetição.
4. Azar
Depois da guerra, na década de 1960, o panorama da música nos Estados Unidos esteve caracterizado por duas tendências aparentemente antitéticas: o serialismo como busca de um sistema capaz de racionalizar a composição, e o repúdio de um sistema estrutural possível e sua substituição pela indeterminação e a contingência.
Milton Babbitt é a figura que encarna o mito tecnológico da racionalização total da estrutura. Em suas composições repetitivas Composición para sintetizador (Composição para sintetizador, 1961), Visión y oración (Visão e oração, 1961) ou Philomel (1964), o compositor traça um sistema sonoro totalmente determinado, fazendo seriais não somente as alturas, mas também outros parâmetros sonoros –duração, dinâmica, formação dos acordes– mediante procedimentos de permutação.
No extremo oposto a hiperdeterminação serial de Babbitt se situa a figura de John Cage.
Cage parte do pressuposto de que o silêncio não existe, sendo a tarefa do compositor “descobrir os meios que consentem aos sons chegarem a ser eles mesmos, ao invés de teorias humanas ou expressões de sentimentos próprios do homem”.7
Diante do “objetivo” como resultado de um processo tecnológico, se contrapõe o “subjetivo” como resultado de um processo aleatório. As ferramentas do compositor são agora a composição aleatória, a leitura casual e a sobreposição indeterminada de composições.
No inverno de 1957, John Cage participa do congresso da Associação Nacional de Professores de Música de Chicago. Algumas de suas declarações foram incluídas mais tarde no volume Silencio, do qual nos permitimos extrair uma passagem:
“Nessa música nova não há nada mais que sons: sons que foram escritos e sons que não o foram. Os que não o foram parecem silêncios na música escrita e abrem o caminho da música a aqueles sons que, casualmente, se produzem no entorno físico. É uma abertura que existe também na escultura e na arquitetura contemporâneas. Os edifícios de vidro de Mies van der Rohe refletem o entorno físico, oferecendo à vista imagens de nuvens, árvores ou gramas, dependendo de onde nos encontremos. E quando se contemplam as construções em tela metálica do escultor Richard Lippold é inevitável que se vejam outras coisas, incluída as pessoas, se é que há pessoas nesse momento, através da trama metálica. Não existem nem o espaço vazio, nem o tempo vazio. Sempre existe algo que ver, algo que ouvir. Se tentarmos com todas as nossas forças fazer ‘silêncio’, não o alcançaremos. Às vezes, para certos fins técnicos, é desejável uma situação o mais silenciosa possível. Um ambiente desse tipo é denominado câmara anecoica; suas seis superfícies são de um material absorvente especial; é um espaço que carece totalmente de ressonâncias. Há vários anos entrei num espaço assim na Harvard University e ouvia dois sons, um agudo e outro grave. Quando os descrevi ao técnico de serviço, me informou que o som mais agudo era meu sistema nervoso em ação, e que o grave, meu sangue em circulação. Até que eu morra existirão dois sons, e seguirão existindo depois da minha morte. Não há que temer pelo futuro da música”.8
Não existe o vazio. Não existe o silêncio. A música está sempre condicionada pelo contingente, mas o paradoxo é que a existência do som do próprio corpo, dos sistemas nervoso, circulatório e respiratório –principio, de certo modo, dos experimentos de Cage–, é uma música seriada, repetitiva, quase matemática, biológica em vez de tecnológica, que se encontra mais próxima aos trabalhos de Babbitt que aos de Cage.
Até no azar existe a repetição… Até com a repetição convive o azar…
E é que a pertinência dos sistemas repetitivos, seriados a partir de certas invariáveis supostamente objetivas, não exclui a existência da realidade de azar, mutável, contingente, que todo processo ou sistema comporta.
Texto original em espanhol: Emilio Tuñón / Tradução ao português: Igor Fracalossi
Referência:
TUÑÓN, Emilio. El cuadrado y la cruz. Cuatro comentarios en torno a la repetición, 1993. Em: MANSILLA, Luis Moreno; ROJO, Luis; TUÑÓN, Emilio. Escritos circenses. Barcelona: Gustavo Gili, 2005.
- MONOD, Jacques, Le hasard et la necessite. Essai sur la philosophie naturelle de la biologie moderne, Éditions du Seuil, Paris, 1970 (versão castelhana: El azar y la necesidad. Ensayo sobre la filosofía natural de la biología moderna. Tusquets, Barcelona, 2000). ↩
- ver: ROSE, Barbara (ed.), Art-as-Art. The Selected Writings of Ad Reinhardt, University of California Press, Berkeley, 1991. ↩
- ver o artigo “Reflexiones en torno a la obra de Donald Judd” neste volume, pp 13-19. ↩
- ver: RYKWERT, Joseph, The Idea of a Town. The Anthropology of Urban Form in Rome, Italy and the Ancient World, Princeton University Press, Princeton (Nova Jersey), 1976 (versão castelhana: La idea de ciudad. Antropología de la forma urbana en Roma, Italia y el mundo antiguo, Sígueme, Salamanca,2002). ↩
- CORTÉS, Juan Antonio; MUÑOZ, María Teresa, “ La repetición en la arquitectura moderna/ 2”, en Arquitectura COAM, 230,1981. ↩
- Ibid. ↩
- VINAY, Gianfranco, Storia dela musica, Einaudi, Turín, 1978; (versão castelhana: Historia de la musica (tomo 11). El siglo XX, Turner, 1986). ↩
- CAGE, John, Silence. Lectures and Writings, The MIT Press, Cambridge (Mass.), 1966 (versão castelhana: Silencio, Árdora, Madrid, 2002.). ↩